"Não acredito em relações perfeitas, nem na teoria da cara-metade.
Acredito que, que longo da vida, podem existir uma ou mais, tal como
nunca existe só uma crença ou religião. A realidade é multíplice,
imperfeita e incompleta. Ao longo da vida podemos ter várias metades. A
realidade é evolutiva e o passado é um lugar estranho onde ninguém mora e
o futuro é como uma nuvem, impossível
de agarrar, ainda que por vezes possível de prever. Talvez seja isto que
o poeta grego Kavafis quis dizer quando escreveu não se entra duas
vezes na mesma nuvem. Durante muito tempo pensei que se referia à
desilusão no amor, como um espelho que se parte, mas talvez o
significado seja mais existencial.
As metades dependem das vontades.
Quando nos apaixonamos e começamos a viver uma história de amor
correspondida, é tudo muito fácil. Durante seis meses a um ano, tudo
parece fácil, certo e leve. Vivemos numa espécie de nuvem de descoberta e
de ideal. Mas uma relação demora, em média, três anos a solidificar-se,
a criar raízes profundas e a crescer. Se crescer depressa demais, pode
estiolar, como acontece às plantas apressadas. Se uma das partes não
quiser que cresça, acabará por sufoca-la, porque esta é a ordem natural
das coisas. E é quando se começa a sair da nuvem, quando deixamos de
pairar mais de metade do dia, quando o outro deixa de ser perfeito aos
nossos olhos, quando nos desilude ou não o conseguimos perceber, então é
aí que começa o trabalho de cuidar, de proteger e de mimar a relação.
As metades dependem das vontades. Às vezes amamos muito o outro, mas
não sabemos cuidar dele porque estamos demasiado fechados nos nossos
problemas, ocupados a cuidar de nós. Para uns é muito mais fácil dar do
que receber. É o caso das pessoas carentes, que se sentem mais felizes
em proporcionar aos outros o que eles querem do que em proteger e
cultivar as suas necessidades. No outro extremo estão as pessoas
mimadas, que acham que tudo lhes é devido e que cada vez que dão, fazem
questão de mostrar ao outro o que lhe estão a dar. O gesto de dar, seja o
que for e a quem for, deve ser discreto, tácito e silencioso.
Quando nos damos a alguém que amamos, damo-nos em pequenos e grandes
gestos, não é preciso fazer uma campanha à volta disso. Ou estamos
dispostos a dar, ou não. E se damos o que queremos e porque queremos,
não devemos cobrar a nossa generosidade, ou estamos a retirar-lhe a sua
essência.
O mais importante é saber dar, para que o outro valorize e
vá reconhecendo como somos, sem precisarmos de lhe dizer. Se o outro
nos amar, também vai dar-nos o seu melhor, mesmo que o seu melhor seja
diferente do nosso. Nem todos os homens são românticos, nem todos se
lembram das datas como as mulheres, nem todos sabem responder a uma
carta de amor, mas se estiverem sempre ao nosso lado quando for preciso,
se todos os dias nos acordarem com um beijo quando estão perto ou um
sorriso quando estão longe, se são consistentes e dedicados, então, como
diz uma amiga minha, já estão de bom tamanho.
Não há homens
perfeitos e ainda bem, porque se houvesse, fartávamo-nos deles num
instante. Um homem imperfeito é um ser humano normal, o que não é normal
é um tipo tão posto por ordem que parece não falhar em nada, porque não
pode ser verdade. Todos falhamos, todos temos defeitos chatos, todos
temos momentos parvos e todos dizemos coisas irreflectidas que nem
sempre pensamos. Quando não conseguimos entender o outro, pode ser que
nem o outro consiga perceber o que se passa. As pessoas estão sempre a
aprender umas com as outras, viver e amar são antes de mais, exercícios
de humildade, nos quais saber parar, saber ouvir e pedir ajuda ao outro
quando é preciso, ajudam a solidificar a relação. O amor é gerador de
beleza e de felicidade, por isso é preciso mima-lo como fazemos a uma
bebé, cuidar dele e protege-lo para que cresça saudável e forte. Sem
investimento nem optimismo, não se constrói nada. E, acima de tudo, tem
de existir a vontade de querer amar o outro, para que, com o tempo, ele
venha a ser a cara-metade que sempre sonhámos. Os sonhos constroem-se. E
ao amor também."
M.O.
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