quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

METADES E VONTADES (Cronica publicada na Flash)

"Não acredito em relações perfeitas, nem na teoria da cara-metade. Acredito que, que longo da vida, podem existir uma ou mais, tal como nunca existe só uma crença ou religião. A realidade é multíplice, imperfeita e incompleta. Ao longo da vida podemos ter várias metades. A realidade é evolutiva e o passado é um lugar estranho onde ninguém mora e o futuro é como uma nuvem, impossível de agarrar, ainda que por vezes possível de prever. Talvez seja isto que o poeta grego Kavafis quis dizer quando escreveu não se entra duas vezes na mesma nuvem. Durante muito tempo pensei que se referia à desilusão no amor, como um espelho que se parte, mas talvez o significado seja mais existencial.
As metades dependem das vontades. Quando nos apaixonamos e começamos a viver uma história de amor correspondida, é tudo muito fácil. Durante seis meses a um ano, tudo parece fácil, certo e leve. Vivemos numa espécie de nuvem de descoberta e de ideal. Mas uma relação demora, em média, três anos a solidificar-se, a criar raízes profundas e a crescer. Se crescer depressa demais, pode estiolar, como acontece às plantas apressadas. Se uma das partes não quiser que cresça, acabará por sufoca-la, porque esta é a ordem natural das coisas. E é quando se começa a sair da nuvem, quando deixamos de pairar mais de metade do dia, quando o outro deixa de ser perfeito aos nossos olhos, quando nos desilude ou não o conseguimos perceber, então é aí que começa o trabalho de cuidar, de proteger e de mimar a relação.
As metades dependem das vontades. Às vezes amamos muito o outro, mas não sabemos cuidar dele porque estamos demasiado fechados nos nossos problemas, ocupados a cuidar de nós. Para uns é muito mais fácil dar do que receber. É o caso das pessoas carentes, que se sentem mais felizes em proporcionar aos outros o que eles querem do que em proteger e cultivar as suas necessidades. No outro extremo estão as pessoas mimadas, que acham que tudo lhes é devido e que cada vez que dão, fazem questão de mostrar ao outro o que lhe estão a dar. O gesto de dar, seja o que for e a quem for, deve ser discreto, tácito e silencioso.
Quando nos damos a alguém que amamos, damo-nos em pequenos e grandes gestos, não é preciso fazer uma campanha à volta disso. Ou estamos dispostos a dar, ou não. E se damos o que queremos e porque queremos, não devemos cobrar a nossa generosidade, ou estamos a retirar-lhe a sua essência.
O mais importante é saber dar, para que o outro valorize e vá reconhecendo como somos, sem precisarmos de lhe dizer. Se o outro nos amar, também vai dar-nos o seu melhor, mesmo que o seu melhor seja diferente do nosso. Nem todos os homens são românticos, nem todos se lembram das datas como as mulheres, nem todos sabem responder a uma carta de amor, mas se estiverem sempre ao nosso lado quando for preciso, se todos os dias nos acordarem com um beijo quando estão perto ou um sorriso quando estão longe, se são consistentes e dedicados, então, como diz uma amiga minha, já estão de bom tamanho.
Não há homens perfeitos e ainda bem, porque se houvesse, fartávamo-nos deles num instante. Um homem imperfeito é um ser humano normal, o que não é normal é um tipo tão posto por ordem que parece não falhar em nada, porque não pode ser verdade. Todos falhamos, todos temos defeitos chatos, todos temos momentos parvos e todos dizemos coisas irreflectidas que nem sempre pensamos. Quando não conseguimos entender o outro, pode ser que nem o outro consiga perceber o que se passa. As pessoas estão sempre a aprender umas com as outras, viver e amar são antes de mais, exercícios de humildade, nos quais saber parar, saber ouvir e pedir ajuda ao outro quando é preciso, ajudam a solidificar a relação. O amor é gerador de beleza e de felicidade, por isso é preciso mima-lo como fazemos a uma bebé, cuidar dele e protege-lo para que cresça saudável e forte. Sem investimento nem optimismo, não se constrói nada. E, acima de tudo, tem de existir a vontade de querer amar o outro, para que, com o tempo, ele venha a ser a cara-metade que sempre sonhámos. Os sonhos constroem-se. E ao amor também."

M.O.

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